terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Nove ponteiros


“'Onde está você, menina?'”
Longo tempo. Sete anos, talvez tenha. Não, oito. Arredondemos para nove. É mais adequado. Inexato. Inexpressivo. Imperfeito. Nove...
É assim que aquele velho tutor me chama. É assim que o atendo. E nos entendemos. Linguagem de amantes. Vocabulário de ofídios.
Ele é velho. É o tutor. Velho. Tenho nove. Sou sangüíneo. Lânguido. Rosto de boneca. Falsa inocência. Sou garoto. Ele é homem. Desses de cabelos grisalhos e voz pastosa.
O homem que me faz menina. Aquele que esmigalha minhas pélvis. Minha inocência. A alma... Ele nutre desejo. Cultiva-no em dança sinuosa pelo corpo. Escorpiões sobre a virilha. É a besta selvagem que quer devorar meu fluxo. O fluxo adocicado como licor. Sou sua menina. Danço em seus dedos. Amantes. Eu quero. Sou consciente. O caos. A calamidade suave não crescida. A inquietude da pulsação. O enrijecer da fibra. O umedecer. A decisão. A situação. Sou o lampejo do pecado.



Na sala vazia, o titubear de ponteiros. Os móveis ao sol. A porta trancada.
Apenas as moscas debatem-se contra as vidraças. Entoam seus zumbidos de melancolia doentia. Perdem as asas. Estraçalham-se perante aquela transparência plana. Estão loucas. Tocariam a androginia marmórea do garoto precoce. A aspereza temporal do homem. Farejam a imundice. São as borboletas de um amor apodrecido. De uma paixão colérica. E de todas essas coisas estragadas ao sol.
A porta trancada. O tutor ensina a lição mais importante. Ensina a técnica do prazer abominável. Sem forma. Intenso. Apenas a corrente de ar que faz tremer as cortinas. O raio solar oblíquo da tarde. A pressão daquele corpo em minhas costas. Das mãos em meu rosto. Do revérbero caótico. Tudo sendo sustentado pelo ar seco da tarde. Pela instransponível assimetria dos corpos.
Grito agora ao mundo que ele me maquiava como uma menina. Que me amava da forma mais louca que pode amar-se. Da maneira mais dolorosa de sentir. Que era obsessivo pelas formas retas da pouca idade. Pelo afeto insensato de uma criança que viria a tornar-se seu melhor aprendiz. Que sabia curvar-se ou erguer-se no momento certo. Que sorria quando esclarecia-me que a porta de meu quarto deveria estar sempre aberta a partir das nove.


O tutor ensina lições para uma vida e suas reencarnações. Sou criança. Queimará ele no inferno? Sou umedecido. Envelhecido com nove. Ele é velho. Enlouquecido por mim. Chama-me de abstrato. Surreal. Expressivo. Impressionante. Mas, acima de tudo, sanguíneo. Impulsivo como apenas meninos e meninas podem ser. Como querem ser.
É o tempo que arrebenta os ferrolhos da porta. É o titubear de ponteiros que me arranca daqueles braços. Que nos faz abortas emoções. Que me faz perder o interesse pelo corpo enrugado. Pelas mãos ásperas. Pelos fios prateados. Que o faz adoecer. Que me torna perceptivo do horrendo. Do grotesco. Que me afasta. Que me permite abandoná-lo.
E é após nove anos que descubro sobre sua morte. Que morreu solitário. Que chamou meu nome até o último momento. Que falou de sentimentos febris. De amores insustentáveis. E de tardes lânguidas.
Então, me arrebento. Perco a consciência. A última sutileza de inocência. Aprendo a última lição. Aprendo sobre a loucura. A loucura do amor. Amor é a destruição. A decadência. A cólera. É um homem que desaprende a viver. Que sente a dor como parte de seu próprio corpo. Que chora. E que morre...
E tudo que ele queria era sobre meu corpo viver. E tudo que ele queria era em mim poder viver. Viver. Ele ainda vive em mim..."




Texto antigo de 2004 apresentado na oficina literária da professora Helena Parente da UFRJ.
Foi nas aulas daquela mulher inteligente que aprendi a força, o universo, a semântica de cada palavra. Aprendi que cada linha em branco é um gigante, um monstro ou um paraíso em gestação.
Com ela, aprendi não somente a narrar fatos, mas também a anunciá-los. Tal qual se anuncia uma guerra, um novo amor, uma morte ou uma vida...