sexta-feira, 27 de junho de 2008

Letter to the kid


Meu querido,

Antes de ti, a melancolia, a autopiedade, o sarcasmo e a arrogância de nosso século. Minhas confabulações com um “eu” que envelhece e se torna mais divisível do que Freud poderia supor. Um rosto sangüíneo de olhar cáustico, cujos traços carregará consigo algum dia, sentindo sobre a epiderme o peso de gerações, genes e de todas as coisas que residem na nossa tímida árvore.

Agora, a ti pertenço e a ti escrevo febrilmente nesta manhã de junho de 2007. Ainda não habitas este mundo.”Corre na brisa, sem carne, sem nome” como o filho de Drummond. No entanto, te imagino tal qual serás, exibindo um imbatível espírito. Pois, eu, sua mãe, seu amor, o ensinarei a não cometer erros símiles aos meus em sua vida. Serei mestra sua, para que exista com paixão e consciência em um mundo que apodrece e se renova a cada momento, a cada suspiro, a cada palavra.
Primeiramente, nunca seja aquilo que querem que o seja. Seja apenas aquilo que você é. Pois, exigirão de você que caminhe em um mesmo compasso que a humanidade rotulada se move. E isso o fará infeliz em incontáveis dias, meu filho. Dessa forma, seja sempre você mesmo. Seja vários como Fernando Pessoa foi, mas desde que todos partam de sua natureza bela e não das mãos de um artesão das próximas décadas.
Cultive amigos e seja amigo daqueles cujos afetos verdadeiros se direcionarem a você. Pois, a amizade é uma misteriosa força que muitas vezes, será a única que sobrará em dias turbulentos. “Ser responsável por aquilo que cativas”. A eles, se dê também sem economias ou má-vontade, para que encontrem também em você amor, meu pequeno príncipe.

Se apaixone algumas vezes em sua vida, mas nunca tome isso como hábito ou passatempo para que a emoção não se torne a fisiologia de todos os dias. Silvestre amou várias com seu coração, até que este se esvaiu, sobrando apenas a cabeça e o exigente estômago. Se apaixone por virtudes mais duradouras que as formas e também se apaixone por si mesmo algumas vezes, sobretudo quando partirem seu coração.
Não seja egoísta. Não seja egocêntrico. Não seja esnobe. Pois esses três “es” são características realmente odiosas em qualquer ser e, mesmo que eu nunca possa odiá-lo, posso me entristecer ao olhar para você e vê-lo como alguém intragável que se instalou em meu ventre, sem aprender que todas as vidas dependem uma da outra.
Tome demasiado cuidado com estranhos prazeres que se tornam cada vez mais acessíveis, pois eles podem matar o gosto por prazeres comuns.
E o “comum” muitas vezes é a tênue linha entre insanidade e juízo.
Acredite em algumas verdades dos livros, mas não confie naqueles que se propõem a concluir todas as coisas da vida por você. Se puxares a mim, odiará livros de auto-ajuda e afins.
Talvez, resida em você a depressão que muitas vezes senti em minha vida. Contra ela, você terá apenas você mesmo. Não a eleve ou a subestime. Pois, nisso reside um erro primário para que ela te devore.
Lembra-te? “Decifra-me ou devoro-te?”
Após refletir sobre a dor e sua essência desprovida de endorfina, após compreender seus enigmas e refletir sobre eles, compreenda que a resposta de tudo é o homem. Apenas em ti, através de ti, curará esse mal de todos os séculos muito menos belo do que aquele testado pelos Românticos. Nada de músicas que te afoguem mais do que já esteja, nada de álcool ou pílulas. Ao invés disso, a força da evolução aos traumas através de mim viverá em sua carne, em seus ossos.
Desenvolva gostos sensíveis e estéticos, sem serem ditados por mim e por seu pai, apesar de às vezes, indubitavelmente eu tentar lhe impô-los. Não esconderei de você meu júbilo caso o surpreenda admirando a arte Impressionista, as Vanguardas européias, a literatura como ápice da criatividade humana, filmes de Almodóvar e Bertolucci, música dos Beatles e ABBA, rock britânico e oriental, desenhos japoneses, quinquilharias chinesas, pôr-do-sol, Bossa-Nova, yaoi, manga, Clarice Lispector, esmaltes de cores berrantes, chocolate, cachorros e gatos, Harry Potter (este tão agredido pela mídia “intelectual” de minha época, sem receber o devido mérito pela criatividade sensível e pesquisadora de J.K.Rowling), sorvete de cereja, bombom “Caribe”, incenso de Flor-de-Lótus, youtube, etc.
No entanto, caso não ame nada daquilo que eu amo, espero que ao menos, divida comigo todas a coisas, paixões e cores que se destaquem para você no cenário monocromático da vida. Você encontrará em mim, uma preocupação e curiosidade sobre todas as coisas que te rodeiam que por vezes, irá irritá-lo. Quanto a isso, nada poderei fazer. Pois, todas as vezes que tiver decidido ser mais comedida, me flagrarei sendo novamente a pessoa que mais te quer bem no mundo.
Não alimente em ti, preconceitos e rancores de qualquer espécie. Pois, eles também me entristecem. Cores, gêneros e credos são as diferenciações mais brilhantes criadas. Caso contrário, Deus se confundiria quando nos chamasse pelos nomes.
Compreenda as pessoas e suas diversidades.
“Ver, rever, ver, rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida”. Observe tudo muito bem. Para que com o “tudo” aprenda a duelar e se harmonizar com todas as coisas, incluindo a si mesmo.
Se eu conseguir me tornar alguém melhor até o dia de seu nascimento, gostaria de ensiná-lo também a não odiar. Pois, odiar é cansativo. E o cansaço anula todas as coisas que te enumero nesta carta com a mesma violência que um titã devora o sacrifício consciente de alguém que paga por seus próprios erros.
De resto, deixarei para ensiná-lo quando estiver junto a mim. Como Oswald de Andrade, descobrirei que a poesia viva no desconhecido paira em ti. Somente em ti. Para sempre em ti.
E caso, através de todas essas filosofias juvenis, não conseguires tornar o mundo um lugar mais confortável, se todos vaiarem sua declamação existencial, desculpo-me contigo, porque sou também uma criança tentando fazer arte. E você será minha tela, meu conto, minha sonata, meu ato mais perfeito. Insuperável, inigualável, incomparável. Os três “is” de minha vida pairando em seus olhos cáusticos como os meus, aconteça o que acontecer, digam o que disser. Serás “Meu Amor Vitorioso” em meio a todas as artes existentes na natureza e no metafísico.
Amo-te desde já e te amarei mesmo no depois quando eu for apenas a carta amarelada e envelhecida que restará como lembrança de carne e ossos tostados, transcendência alcançada, morte e poeira... que assopras.

Sua mãe,
Rafaella

Esse foi o último trabalho entregue na oficina de "Oulipo". A proposta de texto consistia em escrever uma carta a um(a) futuro(a) filho(a), utilizando algumas marcações específicas que cada aluno(a) vinha utilizando como uma constante em seus textos.

Além disso, deveria haver referências a autores cânones e elementos presentes na arte em geral. Eu utilizei alguns autores como Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Saint-Exupéry, Camilo Castelo Branco, etc.

Também mencionei algumas obras de arte famosas como "Amor Victorioso" de Caravaggio e fiz menção a "Semana de Arte Moderna de 22".

A idéia foi pautada através de uma carta que Umberto Ecco havia escrito ao seu filho recém-nascido, incentivando-o à brincadeira com armas na infância, para que através do ridículo dessa situação, ele abominasse armas em sua vida adulta.

Acho que foi uma das apresentações de trabalho mais interessantes que houve durante toda a oficina literária. Foram lidos textos brilhantes e muitíssimo variados. Ninguém caiu no ponto comum e várias vezes, ouvi frases arrebatadoras da boca de meus colegas.

Se algum dia eu tiver realmente um filho, talvez eu faça ele ler essa carta escrita já há um ano atrás, com algumas coisas a mais inseridas com minha cabeça do futuro.

Estranha, essa capacidade de arrancar algo de si e dar a algo que também foi arrancado de si. Quase uma redundância... Mas é fato que sempre dependi da escrita para me entender, para me fazer entender, para me rebelar, aceitar, indagar, modificar e criar.

É natural que essa seja para mim a melhor forma de falar com uma criança. Ponto para "Oulipo"...