segunda-feira, 30 de março de 2009

Fantaisie


Eu vejo na sociedade a fantasia constantemente sendo massacrada e empurrada contra as ilhas nauseantes de realidade. Vejo-a sendo ojerizada como distúrbio, alienação, fuga, imaturidade ou padrão psicológico amarrado a uma interminável Síndrome de Peter Pan.

Quem consegue sobreviver sem fantasia nesse mundo paranóico, implacável e inflexível?

Reconheço que ficar preso a uma época infantil de forma negativa, vetando o processo de amadurecimento é problemático como toda estagnação o é. Mas, como se pode ridicularizar o imaginário ou taxá-lo de incabível?

Eu acordo para ir cumprir minha rotina diária, bater o ponto e retorno de noite para casa com a sensação de satisfação mais nutrida por mim mesma do que pelo sistema desgastante na qual nos movemos a passos trôpegos. Nos intervalos, nos ônibus me refugio na música, em meus amigos, em meus livros, na minha escrita.

Observo os olhares cansados, mortos e anestesiados daqueles que caminham nessa metrópole febril. Quase sugados até os ossos de insatisfação e desgosto.

A fantasia nunca me alienou ou me serviu de pretexto para não me mover adiante. Ao contrário, sempre tive livros como “Harry Potter”, “O Pequeno Príncipe”, “Peter Pan” como verdadeiros mestres. Será que porque sou imatura, infantilizada ou incapaz de compreender um cânone?

Na verdade, já li muito também outros autores como Oscar Wilde, Hermann Hesse, Thomas Mann e Jose Saramago. Erudição é uma questão interessante. Porque amando a escrita como amo, obviamente remexo nas linhas a qualidade poética e o talento nato das palavras.

Mas sei remexer também nas entrelinhas a energia humana. O valor minucioso que parte de algo mais profundo que erudição, no sentido vulgar da palavra, não alcança.

Fantasia constitui de forma vulgar (muito, aliás) um mundo estabelecido unicamente para as crianças.

No mundo infantil, porém, a linguagem é simplificada. Muitas vezes, os instintos prevalecem. Gravita uma interessante atmosfera enigmática de mil possibilidades. Os heróis possuem real bravura e uma moral prática. Nas suas frases curtas, empregam força de algo que fatalmente esquecemos.

No nosso mundo cotidiano e real, a linguagem é extensa. Ambígua. Maliciosa. Hipócrita. Nossos instintos também prevalecem mascarados de intenções. Nossa atmosfera possui enigmas desconstruídos para dar lugar a mitos falhos e fálicos. Nossa bravura é questionável e interesseira. Possuímos Ética cômoda. Nossas frases são longas e vazias. Esquecemos já o que queríamos dizer há alguns anos atrás.

A Fantasia não nos desvincula da realidade. Mas nos reconecta com partes perdidas de nós mesmos que são dissipadas entre os dedos de Chronos. Talvez, possamos voltar a ser inocentes e impedir que a excelência humana seja resvalada inteiramente. Talvez, possamos recuperar bravura para questionar, indagar, somatizar...

Nunca permaneci anestesiada ou apática. Nem nos meus piores dias.

Mas também nunca permaneci chapada, indo de encontro a regras unicamente para fazer barulho e ser notada, para me sentir superior àquilo que sou.

Nunca questionei ritos religiosos porque o ser humano carece de símbolos, simplesmente por precisar. Para ligar-se ao transcendental sem abandonar esse mundo. Mentiroso é aquele que diz não precisar deles.

Nunca acreditei em fantasia programada e montada que algumas vezes vendem sob forma de arte (a arte charlatã). Filmes “cults” de enredo nebuloso e secundário. Acúmulo de imagens bonitas sem propósito, destino ou objetivo. Nunca aceitei sexo como anestésico para meus problemas (apesar de ocasionalmente utilizá-lo como mito). Nem amor como justificativa para atos infames ou degeneração do ego. Nem multimídia para substituição do outro.

Nunca acreditei em relações frágeis, virtuais, efusivas, parasitárias, simbióticas e traumáticas. Nem em reclamação e falatório sem ir para as ruas viver e experimentar um pouco de vida. Nunca acreditei em autopiedade . Em egocentrismo. Em a vida é assim. Ou eu sou assim mesmo, não posso mudar. Todos fazem assim. Fiz assim a vida inteira. Minha maneira é a melhor. A voz do povo é a voz de Deus.

Nunca aceitei a “fantasia” que a realidade reedita e nos entrega, dizendo como bruxa de conto de fadas: “Provem. Tudo pode ser mais simples... A vida pode ser mais interessante... Vocês podem viver em paz.”

Viver na paz que a realidade oferece é aceitar a morte. Aspirar a real, a verdadeira Fantasia é dançar sobre os túmulos. Remontar-se. Enxergar. Exalar bravura. Dar as mãos à Emoção e Razão, mãe e filha que cismam em separar.

Precisamos voltar a experimentar o mundo simples. De sentimentos simples. De necessidades simples. Que se tornam complexos em profundidade, mas não em valor. De silêncio que interpela. De frases lidas que respiram.

De: fadas morrem todas as vezes que alguém diz não acreditar nelas. Foi o tempo que perdeste com tua rosa, que fez tua rosa tão especial. Ou é preciso ter paciência...

É preciso rituais... Os homens do teu planeta cultivam cinco mil rosas num mesmo jardim e não encontram o que procuram... Basta que pensem em coisas boas... A verdade é bela e terrível e portanto, deve ser tratada com grande cautela. Wendy queria crescer, mas não queria deixar Peter Pan. Quem ama, sente a alegria antecipada. Wendy nunca esqueceu Peter Pan. Mas Wendy cresceu.

A Fantasia preenche os espaços vazios, as lacunas, os hiatos.

Sejamos princesas a serem salvas. Em calabouços de nós mesmos. Bruxas a serem derrotadas. Compreendidas. Heróis a se moverem por uma causa e não por si mesmos. Reinos a serem limpos. Podemos ser páginas a serem lidas. Reescritas. Bravura. E eles viveram felizes. Não para sempre. Mas enquanto buscaram felicidade. Porque viviam em um reino distante. Era uma vez... Era... Ainda é... Haverá sempre magia. Será. Mundo em miniatura atingindo pontos vitais do mundo maior. E eles viveram.

Sonhemos. E assim, lembraremos de acordar.


3 comentários:

Priscila disse...

Sonhar pode perfeitamente significar inspiração, e não fuga.
Acho que algumas pessoas confundem fantasia com um ideal inatingível, e a separam da realidade. Daí as coisas mais simples vão parecendo distantes, complexas e inalcançáveis. Uma vida completa parece um ideal de perfeição que exigiria esforços sobre-humanos.
Sendo que o que torna a fantasia tão bela são os valores humanos. Qual seria a graça do Homem Aranha sem o carinho que ele mostra pelo amigo, sem os conflitos que ele passa por culpa e revolta, sem os altos e baixos dele com a namorada? Precisamos voar e ter super poderes para isso?
Sempre achamos que o melhor está distante de nós. Talvez realmente, como o Pequeno Príncipe, precisemos de umas voltas no mundo pra dar valor ao que nunca reparamos mas sempre esteve próximo. Que os sonhos nos conduzam sempre, mas de olhos bem abertos para o que tem por perto!

Pêxe disse...

Vc disse muita coisa aí. muita mesmo.
E acho que concordo com vc. Mas acho tbm que "Fantasia" e "Realidade" são dois símbolos diferentes para a mesma coisa. Duas faces da moeda. aliás, tudo que passa pela mente e pelo toque do homem se tranforma em fantasia. Como o rei midas q transforma em ouro tudo o q toca.é inevitável. A realidade existiu e existirá entes da existência e após o desaparecimento do homem. enquanto existir-mos neste universo, estaremos em e com fantasia, pois nós somos a própria. E o ser humano tem muito disso, uma instabilidade estável, crise existencial, não sabe seu papel no unicverso, e logo nega a si mesmo por vezes. Mas por mais que nos neguemos nunca conseguiremos resitir à nossa real essência: a fantasia.
=***

Rafa disse...

Filosofia de amigos então! Oba! Thanks pelos comments, meus amores. :}
Não sei se a Fantasia é assim tão inerente ao ser-humano. Acho que muitos a enxergam como perigosa oposição à realidade e ao benefício da vida. Acho que muitos se endurecem, evitando esse prazer. Talvez, ela permaneça lá no interior de cada um, não sei. Mas talvez alguns insistam em ignorá-la. Ou reduzi-la.
E aí, observamos a dureza rude de alguns. Que é a realidade sem lapidação e deformada. Enfim...