“O que eram aqueles garotos da década de 40, senão distorções da intocável perfeição pertencente a qualquer ser humano feito à semelhança de Deus? O que eram senão o grotesco assumindo uma posição de destaque no mundo? Sentando-se em lugares reservados e observando de camarote o nascer de uma época repleta de mistérios e infortúnios.
Muitos acontecimentos decorriam sob aquelas lonas de circo. Muitos personagens viriam a desfilar pelos caminhos tortuosos de glória e idolatria... O que eram os gêmeos Juan e Jullian Palmer senão absurdos de uma natureza acidental e incômoda?
Os trapezistas siameses do Grotesque possuíam dois pares de olhos, duas cabeças, um coração e meio, dois braços e duas pernas. Uma só genitália. Um abominável dom de voar sobre trapézios e um gosto particularmente requintado para o humor de fel sarcástico. Revolucionariam aquela década com suas acrobacias fantásticas e levariam o público ao delírio.
Se acham isso inaceitável ou pouco cabível, o que não dizer de Lilith Gausenburg? A inesquecível bailarina portadora de uma única perna. Como eram incríveis suas apresentações e dança com a ajuda de uma bengala. Não lembraria, ela uma bruxa saída de contos de fadas com seus cabelos desgrenhados e loiros? Uma fada com seus gestos suaves e movimentos leves...? Ou então, um belo monstro, uma interessante aberração...? Como podiam os homens da alta sociedade abandonarem suas noivas de natureza muito mais aceitável, para ingressarem em uma vida de bajulação e obsessão pela jovem? Muitos abraçariam a loucura na busca pela bailarina grotesca e pelo ícone de beleza mais popular da década de 40 na América.
Havia outros como Felicité Finnigam,a mulher mais gorda do mundo, Cheng Yu, o homem mais alto do mundo, Babe Jen, a senhora de menor estatura, Rossia Parker, a menina com nariz de porco, Fausto Greenleaf, o menino que engolia pregos, Leia Malei, a mulher canibal, entre muitos. Tudo parecia delimitado por exageros magnânimos e violáveis da estética e natureza.
Mas, o que pode se dizer da obscenidade que esse mundo envolvia? Eram de fato sexy e glamorosas ao extremo essas criaturas absurdas e incompreensíveis. Seres fantásticos que pareciam desafiar a genética e Deus. E que ainda assim pareciam exibir um orgulho bestial de suas formas doentias e bizarras. Não utilizavam apelidos. Lançavam-se nos circos de horrores com seus nomes verdadeiros e por eles, eram chamados.
Fundado em 1932, o circo Grotesque em 1940 tornou-se um marco para a vida de muitas famílias que em feriados ou finais de semanas vestiam suas crianças e iam comprar bilhetes para contemplar o artístico e exuberante mundo tão destoante de suas vidinhas. O Grotesque tornou-se uma ideologia. Não era de admirar-se que muitos visitadores do circo chegassem a extremos. Tornou-se algo como 'moda' a tentativa rotineira de crianças e jovens ingressarem no mundo surrealista do espetáculo. Muitos viriam a amputar seus membros, deformar partes de seu corpo ou forçá-los a adquirir qualquer aspecto medonho. Era a busca de um mundo que fervia entre a guerra e o novo.
A estética mais horrenda do ser humano era abraçada e idolatrada. E a perfeição, por sua vez, negada. A desconstrução humanista era admirada e dessa vez, o mundo decepcionado pelos avanços tecnológicos e guerras, buscava paliativos mórbidos e por que não dizê-lo, abomináveis. Um escoamento natural do descontentamento, da decepção e da frustração com os potenciais conhecidos e naturais.
Em campos de guerra, homens eram mutilados por bombas e tecnologia bélica. Em campos civis, jovens se mutilavam pela Arte e 'Beleza' do incompreensível e desconhecido. Talvez, ainda hoje essa Arte seja muito prematura para a compreensão ou aceitação de perturbadoras visões em tela cotidiana. Em cenário ordinário, estabelecida como culto. Da morbidez coroada como ponto de fuga. Fetiche. Recortes 'belos' da vida habitual e indigesta.”
P. Rafaella . “Little Paradises of the 20th Century”