domingo, 22 de março de 2009

Mermaid


"Maria Contreiras ainda guardava em padrões trôpegos, asfixia encoberta, a memória corpórea de dedos invasivos. De beijos invasivos. Da untuosidade do sangue em meio a rupturas brutais. Lembrava-se de membrana rompida e de alma tremendo aprisionada em corpo. Lembrava-se de como era desejar com cada fibra, célula, capilar a própria morte.
Do estupro que sofrera aos dezesseis, os médicos constataram dois dedos quebrados, um braço fraturado, dois nervos rompidos, escoriações nas mãos, hematomas sobre a superfície das pálpebras, três dentes quebrados, um deslocamento na mandíbula, na pélvis e uma fratura no joelho direito. E em uma análise geral, podia se constatar que a mente teria ainda mais problemas menos óbvios, invisíveis ao raio-X.
Pobre Maria, pensavam todos... Talvez tivesse um futuro brilhante pela frente em outrora. Mas agora, estava ferrada demais e tudo se misturava nesse borrão amargo com gosto de vida onde suspiros pesarosos entrecortam os hiatos.
E ela não superaria a perda de Isabelle. Sobre esse assunto, nada se dizia porque Maria não abriu a boca por semanas e se refugiou em si mesma para chorar a ausência daquela presença ausente. Distante e ainda assim tão enraizada em seu núcleo, Isabelle.
Maria se silenciou e aos poucos todos acreditavam que morria. Definhava como as coisas bonitas arrancadas do mundo definham. Em seu pranto mudo, achavam que costurava sua própria mortalha.
No entanto, Maria voltou a pintar semanas depois. Séria. Com os dedos ainda fraturados. E deu início íntimo e conturbado à revolução pequena, calada e histérica que se revolvia algumas vezes dentro de si. Como estopim, escoamento de tudo que lhe feria com brasa e agonia.
A vida era injusta e lhe roubara tudo que tentara preservar guardado em santuário sem altar.
E como já se falou da Revolução, sabe-se da Revolução do Chile que palpitava nas ruas que circundavam Maria e seus familiares. Do barulho de vozes, armas, imprensa, democracia e força motriz de nação que rangia sobre o solo estreito da América sulista.
O mundo mudava e Maria nada tinha a dizer.
Porque sentia tanto que sua voz se dissolveria na tentativa de aprisionar os solavancos de abstrato. Da dor que confunde e retalha as vísceras, o espírito e algo mais que se soma a tudo presente no santuário.
Então, entre pinceladas violentas, entre a vontade de atravessar telas com tinta, de gritar sem mover um músculo em seu rosto, de chorar toda dor que de tão pesada aniquilava todos os outros sentimentos, tomando-a inteiramente para si, tudo se transformou em voz. Em voz que se vê. Que se toca.
Como se sabe, contrariando a todas as expectativas e desenganos de diagnósticos, ela permaneceu em seu ateliê.
Pintava.
Mesmo quando a dor-amarelo-agonia, tornou-se mais densa e se transformou em vermelho-ira-coágulo.
E as pinturas de Maria Contreiras três anos depois viriam a se tornar conhecidas no Chile como as pinturas mais tristes do Ocidente. Mais tarde, as Américas se tornariam pequenas e os quadros de Contreiras chegariam a Amsterdã e Londres. Voz percorrendo o vento e tropeçando sobre as cabeças. Dor arrancada da raiz humana enfileirada em exposições. Agressivas. Sublimes.
Cizos pendurados como colares em paredes. Dor cáustica. Tudo que pode ser trágico porque Maria tinha sanidade em risco. Precisava gritar.
E ainda sem nada dizer, ela se afundou em relacionamentos fugazes. Em solidão estratosférica. Em mundo de cores e artistas. Em vinhos caros, tequila. Em lembranças em preto e branco do dia em que um fotógrafo colocara Isabelle ao seu lado, capturando seus cabelos desgrenhados, seu deslocamento perturbador.
Maria aprendeu a chorar também com tinta óleo. Pois em si, tudo secava. Todas as emoções pairavam naqueles quadros violentos. Sem perceber, se tornava fria. Exauria-se. Tanto quanto suas pinturas ardiam em febre.
E nada mais há para se dizer. Porque a vida prosseguiu. Silenciosa e barulhenta.
Telas grunhiam. Arte cantando por ela. Em dó maior."
(Ao útero- Rafaella Pastana)

2 comentários:

Priscila disse...

Suas palavras explodem de expressividade tanto quanto os quadros de Maria!
Achei encantador que apesar de triste, esse trecho é tão cheio de vida que não dá pra deprimir. A vitalidade de Maria é bem explícita pelo fato de que ela pega a dor, joga no quadro com todas as forças e dá pro mundo ver. Foi o modo que ela encontrou de lidar com as coisas e admiro muito isso, não só ela conseguir tirar algo belo da dor, também ela não se entregar, encarando de frente o que sente, mesmo que incomode, e abrindo a alma pro mundo.
Fascinante Rafa, continue!

Mione disse...
Este comentário foi removido pelo autor.