"Deve de ser cisma minha Mas a única maneira ainda De imaginar a minha vida É vê-la como um musical dos anos trinta E no meio de uma depressão Te ver e ter beleza e fantasia. E hoje em dia, como é que se diz: 'Eu te amo'? E hoje em dia, vamos fazer um filme"
*** "Meu amor... Disciplina é liberdade Compaixão é fortaleza Ter bondade é ter coragem Lá em casa tem um poço Mas a água é muito limpa..."
"Era doloroso andar por esses asfaltos quando a anestesia entorpecente, eufórica lhe abandonava o corpo. Estado de fraqueza. De ressaca. Quase doença.
Em manhã cinza, indecisa entre gotas de chuva minguadas ou raios de sol esquálidos, Paolo farejou um perfume entre os corpos. Enquanto o tempo se decidia entre fenômenos debilitados naquele dia, Paolo acendeu-se por trinta segundos. Quarenta, no máximo.
Cheiro doce mesclado a odor mais cítrico. Lígia fragmentada em seus cigarros de cereja e em três gotas de perfume no pulso. Paolo não pôde evitar procurá-la na multidão cinzenta que saía dos subúrbios-túmulos para os trabalhos. Estava se acostumando pouco a pouco a ser servil. Entre as pessoas que o contornavam na calçada, buscava. Aspirava o ar. Os olhos fundos como covas se moviam.
Reunir cítrico e doçura deveria ser uma arte. Túlio sempre lhe falava de química. Amava química. Gostava de passar horas realizando combinações dessas cadeias carbonocêntricas. Gostava de testar resultados. De lhe incutir esses saberes.
Mas Túlio não lhe falava do universo, do baque surdo, da perda de chão causados por essas combinações. Citral e cereja coexistindo para lhe roubar os sentidos por trinta segundos. Dez de dor equilibrando-se com saudade.
Lígia lhe olhando por sobre o ombro ao entardecer. Lígia emancipando o solstício em tarde de sol para lhe dizer algo que nem eram palavras. As pessoas quando envelhecem às vezes falam menos.
Nas lembranças, os silêncios adquirem respeito. Cavam sentido.
Paolo desistiu de procurá-la na calçada. Quarenta e um segundos se passaram. O cheiro se fora. Agora estava desmembrado como o pequeno universo de lembrança em catálise e erosão. Provavelmente, partira do batom adocicado de alguma garota de Nabokov e o cheiro cítrico de alguma mulher de Balzac As duas separadas. Não sendo ao mesmo tempo.
Paolo estava abatido por essa paixão violenta e impiedosa. Um garoto de dezesseis amando uma senhora de trinta e seis. Estabelecendo poesias empobrecidas e banais ao amanhecer na rua como algo pequeno e típico de sua idade. Por Lígia que lhe acharia patético. Como algo pequeno e típico também da idade dela.
Espreme-se nessas linhas algo muito amargo de seres empobrecidos. Solitários. Estados que se desenvolvem de forma estratosférica nas guerras mais brutais do silêncio. Do íntimo.
"Quando a juventude se sentar ao canto como uma distinta e velha senhora, quando meu orgulho se despir de suas cores vivas e brutais e a vaidade partir como um pássaro diante da iminência de inverno... Quando todas as inquietações caírem aos meus pés como folhas ressequidas e mortas, talvez eu possa viver em algum lugar pequeno e claro. Talvez, eu possa pintar telas menos viscerais, menos vivas. Talvez, eu mesma possa me tornar menos. E assim, exigir menos, querer menos. E ver menos. E finalmente, precisar de cuidados. Porque nunca precisei de nada. Nem de ninguém. Exceto do pequeno espaço que você ocupa e no qual faz caber a extensão desse mesmo universo que sempre rejeitei. Estaria lá comigo, Isabelle? Levaria ao mar esse animal de escamas arrancadas e guelras entupidas? Esse ser de membros costurados e pulmões dilacerados? Levaria, Isabelle? Levaria?”
Espiral, revolução, cigarro mentolado, pupila de gato, unhas compridas como pinças, mil defeitos, estado de ar, de líquido. Emoção indecente. Razão bruta. Características oblíquas, banais que às vezes, se espalham a olho nu. Outras, não.