segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Livro Infantil

Ela era uma graça. Mas fora feita de retalhos...

Lili passou muitos anos ouvindo que não tinha valor.
De seus olhinhos de botão nada saía
Mas, a boneca feita de pedaços sentia dor.
Pois, em seu coraçãozinho de serragem, o mundo ruía.


Ela nasceu do todo. De pedaços de cortina estrelada, de véu de noiva, de renda de princesa, de linho de soldado.
Nasceu com botões que enxergavam o mundo. Nasceu com lã e flores na cabeça.
Com papel de seda de uma velha pipa. Com arame de uma novíssima cerca.
Com serragem no coraçãozinho vermelho que bateu forte na última costura.
Lili, a boneca de retalhos era feita de pedaços de tudo.

Marilinda, a menina filha da costureira, abraçou Lili contra seu peito. Agora, estariam para sempre juntas.
Juntas correriam o mundo. Juntas empinariam peixes no céu.
Pescariam planetas no mar. Plantariam rosas no ar.
Juntas.
Marilinda nunca esteve tão feliz. Agora, tinha sua sonhada boneca.

Mas, no dia seguinte, todos sussurraram para a menina:
“É uma boneca sem valor. Feita de retalhos e trapos. Ela não fala. E nem anda. Como pode gostar dela?”
Não sabiam eles que a pobre Lili ouvia aquelas palavras com sua cabecinha florida. E que cada florzinha murchava.
E que cada retalho desbotava. E que o seu “tudo” virava “nada”.

Marilinda, no entanto, não dava ouvidos às outras pessoas. Estava apaixonada por Lili.
E de Lili não se separou por muitos anos.
A boneca a cada dia mais a amava.
O que importava o que os outros diziam?
Marilinda a beijava, com ela brincava e ao seu lado dormia.

Aos poucos, a boneca feita de tudo fez de Marilinda seu tudo.
Retalho de listras e retalho de seda.
Retalho de cetim e retalho de estrela
Marilinda em cada pedaço de Lili

Mas, um dia...

Veio a boneca de valor. A boneca de loja que alguém comprou para Marilinda.
A boneca de olhos azuis e cílios. De cachos loiros e vestido de seda.
A boneca de uma cor só. Que falava sozinha. Que andava sozinha.
Que era mais bonita que menina.
Que tudo fazia sozinha.
E Marilinda se apaixonou por aquela beleza.


Lili sentiu uma profunda tristeza. Marilinda não a beijava mais. Perdia a bonequinha de retalhos aqui e ali.
As antigas brincadeiras foram deixadas de lado.
Os segredinhos de menina e boneca acabaram.
E Marilinda só dormia abraçada com Lili porque tinha medo que a boneca nova se quebrasse na cama.
Não queria perdê-la.
Lili não reclamava.


Então, um dia, a boneca nova falou para Lili com sua vozinha movida a pilhas e circuitos.
“Eu sou Dolly. Sou uma bailarina. Qual é o seu nome?”
“Eu sou...eu não sou nada. ”__ respondeu Lili triste demais naquela manhã.
“Eu sou o sonho de todas as meninas, sabia?”
Lili sabia disso porque Marilinda mostrava agora a boneca nova a todos. E ria quando diziam que sua antiga boneca de retalhos não tinha valor.
“Eu também queria ser um sonho...”

Então, Lili partiu naquela tarde. Desceu pela janela de Marilinda e no chão aterrissou, sem dor.
Correria o mundo até ter valor. Até ser boneca de verdade. Sem retalhos e botões.
Falaria com todas as bonecas do mundo. Aprenderia mágica e ciência para ser especial.
Para ser sonho
O sonho de Marilinda.


“I don’t know why nobody told you
How to unfold your love
I don’t know how someone controlled you
They bought and sold you
(...)
I don’t know how you were diverted
You were perverted too
I don’ know how you were inverted
No one alerted you”


Pois é, tenho algum interesse em escrever livro infantil também.
As crianças distorcem a monótona realidade, vêem coisas que não vemos. Vêem cavalos e girafas no lugar de tratores e guindastes. É no mínimo ineressante lidar com essas mentes. E com a dos adultos que se interessem em ler literatura infantil, também.
Aliás, muito da literatura infantil sintetiza graves problemas sociais e desdobram em si reflexões mais contundentes do que as existentes em alguns livros adultos. São "O Pequeno Príncipe", "Peter Pan", "Harry Potter" e "Fronteiras do Universo", livros inconcebíveis em suas metáforas para a realidade humana? Não, não são. E ponto.

Estou postando uma parte da minha história infantil que ainda não tem título, mas já tem enredo.
Pobre Lili. Marilinda dorme com ela pelo hábito, pelo medo de quebrar "a boneca nova" e não por real vontade. Dorme com ela porque no seu mundo infantil já sabe partir corações.
Aliás, eis aí uma coisa que todos já nascem sabendo. Mérito humano?
Não creio...