segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Ao útero

"Lígia descobriu-se muito cedo os pervertendo.
Pervertia com o fogo-fátuo sob cílios compridos, a simetria daquelas formas, as palavras que escorregavam dos lábios adocicadas com um estranho erotismo, os olhares nervosos quando ela os fitava por detrás de seu mundo codificado.
Pervertia aqueles corpos jovens e desejáveis quando interagiam entre si, quando se tocavam suavemente. Intimamente. No acaso das horas. Na inconsciência da vida.
Havia malícia para os rapazes desajeitados do internato. Para a febre virulenta que se alastrava por seus corpos, esmigalhando termômetros nas horas lânguidas da tarde. Derretendo tudo que é palpável e exato, como um quadro de Dali, até que restassem unicamente cabelos, ossos e unhas...
Lígia flagrara-se fitando com particular interesse mesmo as meninas do prédio feminino. As madeixas compridas e brilhantes, os olhares sonhadores, as formas menos duráveis aborrecidas por tanto se conterem.
Igualmente, todas as perversões da professora de literatura jorravam azedadas por também se conterem. Apodreciam em seu íntimo devido às doses excessivas de carência, de solidão, de letargia, de animosidade e principalmente, de um desespero silencioso que às vezes mesclava-se ao difícil sabor da tristeza. Estagnada. Amarga. Todas as paixões de seus adorados livros haviam a traído. Todas, sem exceção, miravam sua silhueta recortada na atmosfera e a contornavam, deixando para trás apenas sensações mais rasteiras, às quais Lígia se apegava com uma fome doentia.
Dessa forma, seu desejo era agressivo. Não possuía suavidade porque distorcera-se um pouco a cada ano. Por trás de sua imagem sóbria, havia sons dolorosos de objetos cortantes, posições indigestas de seus alunos esfregando as solas dos sapatos em seu rosto e mãos, as mocinhas do internato sendo tomadas como por um homem...
Talvez houvesse algo de belo no sigiloso emaranhado de artérias que liga a incerteza, o rancor e a insensibilidade ao estranho andar de escorpiões sobre virilhas. É certo ver Lígia como uma menina inexperiente que ainda espera o primeiro toque sob um pêndulo de trinta e seis que vibrava em um estado mais profundo que a carne.
Os desejos doentios e atrofiados há muito haviam matado o gosto por prazeres comuns. De maneira que, quando Paolo naquela manhã remexera com a química inflamável de seu toque alguma cinza de criatividade romântica em Lígia, os professores, os alunos, as alunas, o zelador, os faxineiros, os rouxinóis do jardim e os insetos, que sempre detectam rapidamente a mudança de estação, perceberam o olhar sonhador fundido naquelas córneas. Ele simplesmente estava lá. Existia agora como anestesia.
Paolo não ousou muito porque ela estava debilitada com palavras murmuradas em sala e vida vazia. Ele apenas disse aquilo e ela o ouviu. Tocou-lhe e ela o sentiu.
Ele estendeu o braço por cima da mesa e acariciou aquele rosto suavemente, sem malícia, sem febre. Como Lígia não reagisse, ele retirou sua mão e sem nenhuma palavra a mais, arrastou sua existência para fora da sala. Porém, não da vida.
Não interpretou, Paolo com a incompreensão de seus dezesseis que a dureza do rosto de Lígia era porque ela não sentira há muito a famigerada paixão de um toque. De uma carícia. Da violência tênue. De invasivos dedos raspando ternura contra sua pele. Como o de um cadáver, aquele rosto era imaculado. De modo que Lívia sentiu fagulhas de incontáveis sentimentos através daquela palma enquanto as palavras que ouvira há pouco, dissecavam a consciência que vivia dentro de si em estranha simbiose.
Paolo não percebeu como mudara aquele dia. Deliberadamente, fizera a razão girar no sentido anti-horário. Brincara com as químicas de uma natureza humana, com paixão fermentada, com amor azedado. Brincara com um coração onde as moscas há muito haviam colocado ovos."

(Brilliant Green)