quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Fero


É verão. Houve chuvas e friagem. O clima anda mais obediente nesses dias. As noites são quentes e eu demoro para dormir. Atravesso as madrugadas escrevendo. Ouço os cachorros da rua latindo para fantasmas e faço da madrugada a melhor hora do dia com minhas esquisitices. Com minha solidão inspiradora. E com o som de pás de ventilador cortando ar quente.
Os sonhos são entrecortados e sei que os murmuro dormindo. Relembro a vida vivida durante o dia. E também da vida vivida durante os anos. Adormeço ao som de Björk e as frases flutuam em limites de inconsciência. Consciência. Subconsciência. E se tornam algo tão meu quando acordo... Transformo voz e música em algo primitivo. Transformo o sono em algo complexo.
As tardes são terríveis. Sinto a pele febril, a respiração ofegante e o corpo exaurido sem nenhum real prazer do qual possa me satisfazer. É apenas o calor. Sinto o calor maldito e os raios de laranja concentrada parecem querer arrancar as vidraças, as cortinas, a escuridão de meu quarto. Tocam os móveis com seus dedos oblíquos. Meus livros, meus CDs, minha cama. Tudo é invadido pela luz que derrete e maltrata.
Quando o sol se põe, me escondo. Corro para o lugar que não é segredo. Subo os degraus que me levam para o terraço e observo aquele soberano se pôr entre as casas. O céu possui tons de sépia. O gato vem e ronrona se esfregando em minhas pernas. Quase tropeço no último degrau. Ele me olha com aqueles olhos grandes e verdes. Às vezes, amarelos.
Afia suas unhas em meus calcanhares. Não me importo. Vejo-o passear elegante sobre os muros sempre com aquela expressão de superioridade. Com aquele ar de “Se comporte quando estiver em meu território...”. Acho mesmo que sempre fui mais dele do que ele foi meu.
Sento no chão e gosto de não pensar. Suavizo-me. Quase evaporo. Não reflito mais sobre minhas disparidades. Meus conflitos. Minhas nuances. Meu ter que fazer. Minha quebra de regras. Meu pensar que é pensar desde que lembro e trabalha em sentidos confusos. Inquietos e adoráveis.
Às vezes, vejo relâmpagos e raios no horizonte. Por cima dos telhados das casas. Vejo o céu se estilhaçar por luz elétrica antes de voltar a ser só um novamente. Vejo o infinito se romper por um segundo.
O gato tem medo de relâmpagos. Pula em meu colo e se acomoda. Acaricio suas orelhas.
Vejo o céu agora. O vento. A tempestade que se aproxima. Vejo meu pai olhando eu olhar para o nada. Ele acha que estou me acabando. Que esse sentir que não compartilho é misterioso. Suspeito. Preocupante.
Outras vezes, o confunde com frieza. Com dissociação do mundo. Com alienação bárbara e inconcebível. Com perigo em combustão.
Quase me aborreço por sempre acharem que tenho algum plano mirabolante em voga. Que ainda resta algum mistério.
Exponho-me tanto na escrita que meu DNA poderia ser medido por grafemas. Seria um mapeamento violento de linhas, prazer, cólera e frases. É algo tão explícito que poderia ruborizar diante de tudo que já disse.
Essa prostituição de idéias mal paga me excita. Deixa-me subindo pelas paredes. Escrever é um prazer. É estímulo. Masturbação compartilhada. Subversiva. Imoral.
Estimular o ego diante de uma platéia atenta para verem até aonde podemos ir. O quanto se pode agüentar antes de perder o controle. A consciência. Entrego os mistérios de mãos beijadas. Os pontos.
Suavizo-me. Evaporo...

2 comentários:

Priscila disse...

E nós somos leitores voyeristas, ávidos por toda a intimidade que o escritor quiser mostrar... quanto mais fundo, melhor! ui, que sexy^^
é verdade Rafa, se a gente para um instante, as pessoas acham que tem algo errado. por que na vida temos que estar ocupados sempre? estar vivo é se ocupar também!
já dizia Fernando Pessoa: "ai, que prazer, ter um livro pra ler, e não o fazer"
viva a liberdade!
é uma benção essa comunhão com tudo!

Anônimo disse...

Às vezes, acho que sou meio patética, meio imoral. Sou eu apenas que enxergo essa sensualidade arrebatadora na literatura? Na arte em geral? Ou minha mente é maliciosa a ponto de distorcer palavras, papel e um conjunto de boas/más intenções? :P
Não ter o que fazer é bom. Estou em concentração para o resto dos trezentos e tantos dias onde vou ter muuuuuuuuuito o que fazer... :/
Acho bom porque o ócio é oficina do diabinho com chifres. Mas é tãaaaao bom! :D